top of page
LITERATURA SEM FUNDO.png

    Pela primeira vez

                         Carmélia Cândida

Lukas Bieri.jpg

    Sempre fora alegre e agradável. Difícil era não simpatizar com ele. Talvez por isso e mais os dotes culinários da mulher, o modesto restaurante que abriram nos primeiros anos do casamento tenha prosperado tanto e se tornado um dos mais movimentados da cidade. 
   Acumulava quarenta anos de trabalho só no estabelecimento com a esposa. Começara a trabalhar, porém, muito antes, aos trezes anos, como vendedor de picolé e engraxate. Conseguiu emprego como balconista em um armazém, depois como vendedor em uma concessionária de automóveis. Até que resolveram abrir o próprio negócio. Em pouco prazo, precisaram de um espaço maior, que também foi ficando pequeno com o passar do tempo. Em vinte anos, estavam na sede própria, bem estruturada e em um ponto excelente. 
   Tanto ele como a mulher tinham disposição de sobra para o trabalho. Faziam o que fosse preciso. Os funcionários eram essenciais, mas eram os dois quem sempre estavam à frente de tudo. Para eles, não havia fim de semana nem férias. Feriado, somente o da Sexta-Feira Santa; folga, só na segunda-feira. 
   Trabalhar não mata ninguém, é o que diziam. E era do restaurante que tiravam o sustento. Construíram uma bela casa própria, ampla e confortável. Criaram os dois filhos, puderam pagar uma boa faculdade para eles. Queriam que tivessem uma vida diferente. 
   Planejavam a aposentadoria. Estava tudo calculado. Quando ela chegasse, arrendariam ou venderiam o restaurante. Comprariam um sítio aconchegante e se mudariam para lá. Sonhavam com isso. E estava muito perto. 
   Mas agora ele estava ali, sentado em um banco na orla da lagoa, no centro da cidade, com um envelope nas mãos, sem saber o que fazer. 
   Na rua, quando deixou o prédio do consultório médico, sentiu a vista ofuscada pela luz do dia. Cambaleou ao andar. Passou pelo carro, estacionado ali perto, fez menção de abrir a porta, mas prosseguiu. Foi caminhando, sem destino certo, sob o sol naquele dia frio de inverno. Havia barulho de carros, de pessoas, mas ele só conseguia prestar atenção nos ecos que estavam dentro da sua cabeça. Andou até parar na orla da lagoa. 
   O que ia fazer, agora? Como iria contar tudo para a mulher, para os filhos?  O doutor havia sido direto:  não havia muito a ser feito. Como assim? Tudo está bem e, de uma hora para outra, tudo muda? Então é desse jeito?
   Precisava respirar. Sentou-se ao banco, fechou os olhos, ficou sentindo uma brisa leve bater em seu rosto. Foi respirando devagar. Procurou imaginar campos floridos, com muito vento. Viu a si mesmo e à esposa, de mãos dadas e felizes, passeando por esses campos. Depois viu os filhos juntarem-se a eles e deixou-se ficar assim por um tempo. Quando abriu os olhos, ficou a observar o ambiente ao seu redor. Olhou as folhas das árvores balançando, um casal de patos nadando na lagoa, as pessoas indo e vindo. Era tudo tão bonito!
   Mais calmo, voltou a si e começou a planejar o que iria fazer. Ajeitaria a vida financeira para a esposa que, há cerca de um ano, tinha sido diagnosticada com artrite e, ultimamente, vinha se queixando frequentemente de dores de cabeça.  Ela não conseguiria prosseguir com o restaurante sozinha.  Teria que ter tempo para vender o estabelecimento e organizar as coisas. Daria um jeito. 
   E o que mais faria no prazo que lhe restava? Não trabalhariam mais aos domingos! Estava definido.  Viajaria com a mulher para a praia! Isso faria a qualquer custo, cumprindo uma promessa antiga! A esposa dizia que sentia muita saudade de ver o mar, visto apenas uma vez.  Por que não deram um jeito e foram antes? Por quê?  
   Continuou ali, na orla da lagoa, perdido em pensamentos. Lembrou do início do casamento, quando ele e a mulher, cheios de sonhos, faziam planos para o futuro. Pensou nas inúmeras viagens que fariam e em tudo que recuperariam depois que se aposentassem. Lembrou das diversas vezes em que não participou das festinhas na escola dos filhos, de comemorações da família. 
   Tentou dimensionar o quanto ele e a esposa trabalharam em toda a vida.  Riu das preocupações em guardar dinheiro para uma velhice segura. Agora, nada disso mais importava.
   A luz do sol foi ficando fraca. As luzes da cidade começam a se acender. Tinha que voltar para casa. Quer dizer, para o restaurante. 
   Fazendo o caminho de volta, sente a face molhada. Entra no carro e, ao dirigir, vai observando as ruas, as pessoas, os outros motoristas. Quando para, ao chegar em um semáforo, um artista de rua está fazendo malabarismos com fogo. Fica encantado com a cena. Por instantes, esquece tudo que está lhe acontecendo. O sinal abre, e as buzinas logo o despertam. Então segue seu caminho.  
   Tudo lhe parece diferente. Era como se ele estivesse vendo aquelas ruas, aquela cidade de onde saiu em raras ocasiões, pela primeira vez.

bottom of page